Trecho de Guia Politicamente Incorreto da História do Brasil, de Leandro Narloch
Em 1646, os jesuítas que tentavam
evangelizar
os índios no Rio de Janeiro tinham um problema. As aldeias
onde moravam com os nativos ficavam perto de engenhos que produziam vinhos e aguardente.
Bêbados, os índios tiravam o sono dos padres. Numa carta de 25 de
julho daquele ano, Francisco Carneiro, o reitor do colégio jesuíta,
reclamou que o álcool provocava "ofensas a Deus, adultérios,
doenças, brigas, ferimentos, mortes" e ainda fazia o pessoal faltar
às missas. Para acabar com a indisciplina, os missionários decidiram
mudar três aldeias para um lugar mais longe, de modo que não ficasse
tão fácil passar ali no engenho e tomar umas. Não deu certo.
Foi só os índios e os colonos ficarem sabendo da decisão
para se revoltarem juntos. Botaram fogo nas choupanas dos padres, que imediatamente
desistiram da mudança.
Os
anos passaram e o problema continuou. Mais de um século depois, em 1755,
o novo reitor se dizia contrariado com os índios por causa do "gosto
que neles reina de viver entre os brancos". Era comum fugirem para as vilas
e os engenhos, onde não precisavam obedecer a tantas regras. O reitor escreveu
a um colega dizendo que eles "se recolhem nas casas dos brancos a título
de os servir; mas verdadeiramente para viver a sua vontade e sem coação
darem-se mais livremente aos seus costumados vícios". O contrário
também acontecia. Nas primeiras décadas do Brasil, tantos portugueses
iam fazer festa nas aldeias que os representantes do reino português ficaram
preocupados. Enquanto tentavam fazer os índios viver como cristãos,
viam os cristãos vestidos como índios, com várias mulheres
e participando de festas no meio das tribos. Foi preciso editar leis para conter
a convivência nas aldeias. Em 1583, por exemplo, o conselho municipal de
São Paulo proibiu os colonos de participar de festas
dos índios e "beber e dançar segundo seu costume". 2
Os historiadores já fizeram retratos bem diversos dos índios
brasileiros. Nos primeiros relatos, os nativos eram seres incivilizados, quase
animais que precisaram ser domesticados ou derrotados. Uma visão oposta
se propagou no século 19, com o indianismo romântico, que retratou
os nativos como bons selvagens donos de uma moral intangível. Parte dessa
visão continuou no século 20. Historiadores como
Florestan Fernandes, que em 1952 escreveu A
Função Social
da Guerra na Sociedade Tupinambá ,
montaram relatos onde a cultura indígena original e pura
teria sido destruída pelos gananciosos e cruéis conquistadores europeus.
Os
índios que ficaram para essa história foram os bravos e corajosos
que lutaram contra os portugueses. Quando eram derrotados e entravam para a sociedade
colonial, saíam dos livros. Apesar de tentar dar mais valor à cultura
indígena, os textos continuaram encarando os índios como coisas,
seres passivos que não tiveram outra opção senão lutar
contra os portugueses ou se submeter a eles. Surgiu assim o discurso tradicional
que até hoje alimenta o conhecimento popular e aulas da escola. Esse discurso
nos faz acreditar que os nativos da América viviam em harmonia entre si
e em equilíbrio com a natureza até os portugueses chegarem, travarem
guerras eternas e destruírem plantas, animais, pessoas e culturas.
Na
última década, a história mudou outra vez. Uma nova leva
de estudos, que ainda não se popularizou, toma a cultura indígena
não como um valor cristalizado. Sem negar as caçadas que os índios
sofreram, os pesquisadores mostraram que eles não foram só vítimas
indefesas. A colonização foi marcada também por escolhas
e preferências dos índios, que os portugueses, em número muito
menor e precisando de segurança para instalar suas colônias, diversas
vezes acataram. Muitos índios foram amigos dos brancos, aliados em guerras,
vizinhos que se misturaram até virar a população brasileira
de hoje. "Os índios transformaram-se mais do que foram transformados",
afirma a historiadora Maria Regina Celestino
de Almeida na tese Os
Índios Aldeados no Rio de Janeiro
Colonial ,
de 2000. As festas e bebedeiras de índios e brancos mostram
que não houve só tragédias e conflitos durante aquele choque
das civilizações. Em pleno período colonial, muitos índios
deviam achar bem chato viver nas tribos ou nas aldeias dos padres. Queriam mesmo
era ficar com os brancos, misturar-se a eles e desfrutar das novidades que traziam.
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